A grotesquização do indesejado
[Cinema]
O corpo da mulher idosa no cinema de horror
Há séculos o horror tem sido um meio de expressar os motivos de inquietação da sociedade. Monstros nada são além de representações absurdas de coisas e sentimentos que preocupam as pessoas como um todo em determinado espaço e tempo. Nenhuma caracterização horrorosa é por acaso, tudo vem de algum lugar. Qualquer coisa no mundo – desde guerras, terrorismo, até sexualidade, doenças e os mistérios do próprio corpo humano – que cause desconforto serve de inspiração para a criação de criaturas e histórias horrorosas. Infelizmente, as figuras assustadoras muitas vezes resgatam uma noção capacitista, idadista e preconceituosa no geral, levando a uma alimentação retroativa da discriminação. Dentro da imagética do terror, uma figura usada muito comumente para causar medo e nojo, é a mulher idosa, como é possível notar em filmes como O Iluminado (Stanley Kubrick, 1980) e A Bruxa (Robert Eggers, 2015). Essa visão grotesca da mulher idosa dentro e fora das telas é um tema que permeia todos os aspectos do filme X: A Marca da Morte (Ti West, 2022), ao ser utilizado não apenas da maneira clichê, mas também de maneira autoconsciente como motor da trama.
Escondido atrás de emoções fortes e visuais impressionantes, está o grande potencial de propaganda e propagação de estereótipos do gênero de horror. Em um filme de terror, a criação de afetos intensos como o medo e nojo a partir de uma identificação com o que está sendo visto, seja a partir de um personagem ou da própria câmera, é ponto principal. Tais efeitos acontecem melhor dentro de um ambiente isolado, muitas vezes escuro, como uma sala de cinema, ou um quarto com as luzes apagadas onde o espectador não tem a opção de se distrair com outra coisa, ou saber o que está acontecendo ao seu redor fora o que está vendo na tela, muitas vezes descrito pelos fãs do gênero como o ambiente ideal para se assistir aos filmes. Ao ser imerso dessa maneira nesses afetos e identificações, o espectador se torna suscetível a aceitar em seu consciente e subconsciente qualquer ideia que esteja sendo impressa no filme (Baudry) que está atrás da máscara dos personagens queridos e do medo.
Nesse sentido, muito do que conhecemos como figuras famosas do gênero foram criadas não apenas para refletir, mas sim para propagar preconceitos. Um exemplo são zumbis e vampiros, que trazem junto de si uma relação com doenças, infecções, criando uma fantasia capacitista na cabeça do espectador que continua existindo quando o mesmo sai da sala do cinema. A propagação de um entendimento estereotipado do belo e do grotesco, do bom e do ruim, causada pelo cinema, em especial de horror, afeta qualquer um que não atende ao padrão eurocêntrico do homem branco heterossexual.
O corpo em frente a tela nunca é usado ao acaso. Todos os personagens e a maneira com que se apresentam são pensados para criar algum afeto ou identificação por parte do espectador, especialmente o espectador masculino. Esse espectador pode se identificar tanto com a câmera e a maneira com que ela observa os corpos, em especial o feminino, quanto com as personagens, principalmente masculinas, que interagem com estes corpos (Mulvey). Toda essa criação do produto audiovisual como um todo a partir de uma ótica masculina está profundamente ligada aos estereótipos imagéticos do horror. Um clichê machista muito claro no horror é a grotesquização – a transformação em vil, nojento – do corpo da mulher idosa. Qualquer corpo que não é desejado sexualmente é recebido como completamente indesejado, não deve ser visto, logo apenas sua presença causa aversão. Exemplos disso podem ser notados em filmes como O Iluminado, onde em uma cena o fantasma de uma mulher jovem envelhece enquanto é beijada pelo protagonista, o deixando com medo instantaneamente, passando a ideia de que há motivos para temer o corpo de uma mulher idosa, mas não o de uma mulher jovem; e A Bruxa , onde a bruxa é representada por uma mulher idosa, que aparece sempre sem roupas, tendo sua presença na câmera sempre grotesquizada e usada como motivo para agonia e nojo
Essa visão machista não nasce e morre em si mesma, não vem apenas de algo que muitos defendem como “fator biológico”, ou do medo do envelhecimento cultivado entre muitas comunidades. A noção do grotesco no corpo idoso vem também da maneira como se dá a exposição desses corpos dentro da mídia, em especial a de terror – é uma alimentação retroativa. Ao mesmo tempo que a visão negativa sobre esses corpos vem a partir do machismo e objetificação, esses mesmos ideais continuam sendo alimentados por essas imagens, em um ciclo que não permite desprender esses corpos desse lugar grotesco.
A imagem da mulher idosa no cinema já pode ser considerada um clichê, e se tornou tema principal do filme X: A Marca da Morte. A maneira com que o filme lida com esse tema exemplifica muito bem a alimentação retroativa dos preconceitos dentro da mídia de horror. O filme é feito a partir de uma ótica que usa o corpo da mulher idosa como gerador de afetos típicos do gênero de horror, mas ao mesmo tempo que os próprios personagens entendem essa visão e ela serve como motivador da trama. O longa resgata o subgênero slasher e suas marcas ao contar a história de uma garota chamada Maxxine que vai com seu grupo de cineastas independentes para uma fazenda gravar um filme adulto. Durante sua estadia, os jovens conseguem despertar a antipatia da dona da fazenda, Pearl, uma mulher idosa que sente muita inveja de como os jovens, em especial Maxxine, estão aproveitando seus corpos para alcançar a fama, algo que fica claro que ela não conseguiu em sua juventude no segundo filme, Pearl (Ti West, 2022). Pearl sabe que seu corpo nunca terá um lugar em frente às câmeras à essa altura da sua vida, e desconta sua frustração matando os jovens hóspedes.
O filme, apesar de subverter alguns conceitos previamente estabelecidos no subgênero, como a final girl puritana, não é exatamente subversivo ao se tratar da representação da mulher idosa, mas certamente coloca um enorme holofote em cima da temática através do seu roteiro. Toda a construção do filme, roteiro, fotografia e direção giram em torno da figura da mulher idosa na tela. Com planos detalhes do corpo de Pearl sendo usados para criar uma imagem sinistra sobre ela até mesmo quando ela não está matando em frente à câmera, X usa muito a imagem da idosa como uma maneira de provocar desconforto, assim como é visto em A Bruxa . O filme se aproveita da identificação tanto com os personagens quanto com a câmera para gerar a tensão baseada no nojo e coloca o corpo de Pearl em uma posição de grotesquização em relação ao corpo de Maxxine em todos os momentos, criando uma quebra e ao mesmo tempo uma comparação do desejo do espectador, como é visto na cena do fantasma no banheiro em O Iluminado. Uma cena onde esse uso é muito visível é quando Maxxine se deita e Pearl toca seu corpo. Nessa cena, o espectador masculino não consegue se identificar com nenhuma das três entidades, câmera ou personagens, sem se ver interagindo de maneira vagamente sexual com o corpo de Pearl, ao qual sentem aversão. O efeito de cada corpo em frente à câmera é conhecido tanto pela produção quanto pelos personagens dentro do universo fílmico, tornando X um filme que alimenta a si mesmo:
sendo um filme que fala sobre cinema, a história de Pearl e Maxxine só faz sentido por causa da reação que as personagens causam no filme real, e consequentemente que causariam no filme ficcional.
Com seus afetos fortes e grande capacidade de identificação, o gênero de horror é um solo fértil para a propagação de estereótipos e preconceitos, ao mesmo tempo que se alimenta deles para tocar ao público. As figuras monstruosas nada são além de reflexos de conceitos que já aterrorizam a sociedade, e sua representação atrelada sempre ao nojo e ao medo serve apenas para manter esse status. Levando em consideração a teoria de Mulvey que diz que o cinema serve muito mais aos realizadores e espectadores masculinos, os conceitos aterrorizantes trazidos para o horror são em sua maioria ditados por esse olhar, trazendo para um holofote negativo todas as existências que foge do padrão preferido por este grupo, e entre elas está o corpo da mulher idosa. A aparição de um corpo feminino que não serve aos prazer dos homens que a assistem se torna aversiva, vil, causando uma resposta negativa sem muito esforço. Sua existência onde pode ser visto já é grotesca. Dessa maneira, a sociedade continua recebendo esses corpos apenas como algo negativo através da mídia, o que os fixa como algo indesejado, perpetuando a visão machista de uma “data de validade” dos corpos das mulheres e criando uma grotesquização de idosas dentro e fora das telas.
BIBLIOGRAFIA
BAUDRY, J-L. Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base. In: XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema.
CLARK, A. The Fragility of White Masculinity: An Exploration of the White, The Fragility of White Masculinity: An Exploration of the White, Heterosexual Male Fantasy of Gender in Horror Heterosexual Male Fantasy of Gender in Horror.
HOLEK. LENÉ. et al. The Routledge Companion to Cinema & Gender. Florence: Taylor and Francis, 2016.
MULVEY, L. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema.